quinta-feira, maio 31, 2007


O carimbo do tempo

Olhas as mãos
e não vês apenas as rugas,
a calosidade.
vês a vida, o ardor do carimbo arrebatado do tempo e
os cânticos das longas jornas de trabalho
no suor que te escorria a face

Sentes o cheiro a terra e a estrume
e [qual nódoas] regressam as pintas da cal
com que cobriste
os muros altos da quinta em ruína

Olhas as mãos e vês-te a ti, jovem
à espera de as tornares a olhar, velho
para que percebas que o tempo que corre
de um momento ao outro
só faz sentido agora,
ao olhares as mãos.


Miguel Godinho

domingo, maio 27, 2007



Faro

Aqui me encontrei
Uma e outra vez
Aqui me descobri
uma e mais vezes
nos covis desta cidade
nas entranhas das ruelas

aqui me perdi
uma e outra vez
como se dançasse
ao som dos lampiões urbanos
nunca era tarde demais
nunca me detinham com palavras
as palavras eram sempre poucas
o som era o que me movia
as luzes, os cheiros
as flores lilases dos jacarandás
o pôr do sol na sé
e os amanhãs despreocupados
os aliados sempre ali
e eu sem me aperceber que era eu
sem necessidade de ser eu
vagabundo errante
na sombra dos dias
nas longas esperas pela noite

Miguel Godinho

sábado, maio 26, 2007













As silhuetas talhadas

A cal em chamas
recortada na casa e
as silhuetas talhadas
no silêncio dos campos.
Há poesia nas sombras,
nos telhados, na nora
e no sol ardente
derramado no horizonte crepuscular
em sopros de ventos perfumados


Miguel Godinho

terça-feira, maio 22, 2007

Uma última vez

o teu olhar nu ou
a lancinante elegância que arruinou
o escudo que inventei

na confusão da escrita
deixo bem claro
na escura folha
que não te verei
uma última vez

Miguel Godinho

sábado, maio 19, 2007

A imagem

Assim de súbito
uma memória de sangue
e a cristalina imagem:
tu diante de mim
imaculada
como se nunca
te tivesses ausentado

de novo
uma lágrima que escorre
e tu a rires-te da estulta figura
que confecciono
de cada vez que a brisa de Verão
traz de volta
o sabor dos teus lábios

a lua continua cheia lá no alto
é como se permanecêssemos
para sempre deitados
na praia onde tudo começou

Miguel Godinho

quinta-feira, maio 10, 2007

Esculpir o silêncio

O vazio dos meus suspiros
e as lágrimas vespertinas
nos desertos áridos do nosso ser
as ilusões sensíveis nas curvas do olhar
e os sonhos recortados a cada instante

inflamo a dor com esses suspiros
esses hálitos inúteis esculpidos de bafio
agora é o olhar caído que pensa saudade
saudade dos tempos
em que pouco queria dizer muito

Miguel Godinho

quarta-feira, maio 09, 2007

Há individuos (senhores e senhoras) na função pública que assim que se vêem com um cargo hierarquicamente interessante, passam a trajar uma pose bastante curiosa. Aderem ao clube dos chico-espertos e resolvem trocar as fraldinhas por camisinhas bem engomadinhas combinadinhas com calçinha de pinça creme já que assim pensam que conseguem algum respeito, como se não cheirasse a arrogância sempre que se esquecem de fechar a porta dos seus gabinetes.
Vidinhas...

terça-feira, maio 08, 2007

O momento

é sem aviso que se aviva
a mais remota infância.
de repente a linha ausente do tempo
riscada no papel em branco
borra-se como mancha imaculada

é então que percebes que
o mistério que te fez grande
foi apenas o enevoamento
desse passado distante

Miguel Godinho