sábado, dezembro 30, 2006

A beleza intelectual de uma pessoa consiste na forma
como esta se despe, na gentileza com que se desnuda.

Um texto é uma forma de se despir um assunto.
Há uma sensualidade na forma como este deixa cair a sua roupagem.

Miguel Godinho

quinta-feira, dezembro 28, 2006

A rarefacção do ar
neste ambiente infectado
obriga-me a
respirar o ar que me consome, a
consumir o ar que me respira, a
definhar para respirar o ar que
consumo quando tento
respirar. É assim que
fico sem fôlego quando
respiro este ar de contágio
quando sorvo esse ar para o respirar
quando respiro de um só
fôlego esse ar que me consome.
É assim que sobrevivo,
é assim que vou existindo
neste ambiente pervertido e
é assim que me corrompo também.

Miguel Godinho

domingo, dezembro 24, 2006

Expressão curiosa:
"O Natal não interessa nem ao menino Jesus".
Dá que pensar...

sábado, dezembro 23, 2006

É um eu que provém do eu

É um eu que provém do eu
Um corpo sem corpo que parte
desta matriz primordial
de uma mãe que sou eu
de um pai que é o vento
Descaramento amniótico de um ventre
que deixa nascer e pode matar
Imagem translúcida mutável, uma
aparição que pare imprime e comprime
a imagem espectral do que sempre somos:
frutos procedentes do Outro,
seres uterinos, umbilicais
sem figuração real
sem tão pouco sabermos
se somos um ou o outro.

Miguel Godinho

sexta-feira, dezembro 22, 2006

A dor das árvores

As árvores lacrimejam e padecem
lembram-se das folhas
que sempre tombam
A terra ampara
e oculta essa dor
como que tentando conceber e
assimilar o trânsito das estações
penetrando no silêncio impenetrável
desse pesar que só as árvores
desnudam.

Miguel Godinho

quinta-feira, dezembro 21, 2006

Uma parte do texto

Abrir esse livro
Consumir uma parte do texto
e deixar-me consumir
Como se a mensagem que transporta
fosse suficiente para perceber toda uma vida
e entender o caminho que me leva
até ao momento
em que abro esse livro
e o fecho de seguida, saciado.


Miguel Godinho

quarta-feira, dezembro 20, 2006

Sentado na nora percebi

Sentado na nora de Cacela percebi que
os figos secos têm o sabor da inocência
e que a luz deste sol de Dezembro
traz a palavra que me conforta
madurada numa memória
de um Dezembro intemporal
reflectida na cal
que se renova mas que
juntamente com o azul do céu
e do mar lá longe conserva
as cores da constância
deste Algarve onde nasci.

Miguel Godinho
Lúcidos silêncios

O gesto inocente na linguagem corporal
a tua violenta forma de ser sem se ver,
um incêndio. Vibram as enérgicas esferas
de luz ferem-me a íris - como que
lúcidos silêncios habitados pelo
respirar de uma ausência que é falsa
e então estremeço com a delicadeza
com que nomeias a palavra que me define
Consome-se o ar irrespirável projecta-se
em mim a sombra desse lugar
desse espaço que não é completamente vazio
Uma incandescência que se esconde
numa volúpia de vibrações
gravitam em mim as curvas óbvias da essência
que te compõem e resplandeço
ainda que sejas ferida que não cura
ainda que não sintas a transparência

Miguel Godinho

segunda-feira, dezembro 18, 2006

O cinema da Encarnação

Lembro-me do meu tio, cheio de vida, a desafiar o meu pai quando lá íamos a casa para ir beber um copo de vinho ao cinema da Encarnação. Esse cinema não passava filmes, o próprio sítio era um filme. Daqueles antigos, a preto e branco, mudos, com cenários de salas cheias de fumo, toda a gente a gesticular muito, uma banda sonora muito agitada. Eu era pequeno mas recordo-me bastante bem. Era o local onde se encontravam (e encontram) os amigos lá da zona. Um género de grémio associativo onde se jogava às cartas, dominó, onde se fumava e bebia. Muito. Falava-se da vida. O meu tio ria, falava alto, gritava mesmo, desafiava toda a gente. Nunca foi uma pessoa muito próxima mas por ser um sujeito muito alegre, gostava dele. Fazia-me sentir bem, brincava comigo. Tenho pena. Tenho muita pena. Fui encontrá-lo há pouco tempo confinado a um quarto onde havia um prato cheio de rebuçados, numa Clínica de Cuidados Paliativos em Idanha, num estado que se afasta em muito dessa memória que tenho dele. Não somos nada. Tão depressa estamos bem, como de um momento para o outro caímos a pique para o chão, por vezes sem ninguém que nos ampare a queda. Felizmente não é este o caso. Não somos realmente nada.
Acho que o tal cinema ainda funciona, pelo menos agora quando lá fui ainda vi a mesma agitação na zona, depois de tantos anos. Descobri o mesmo corrupio de senhores de meia-idade (e mesmo jovens) que lá confluem em busca do conforto dos amigos, esses amigos que parece que lá estão sempre, nunca saindo verdadeiramente do sítio. É uma rotina diária. É quase uma família. Vão a casa mas regressam sempre, todos os dias. Por isso nunca chegam verdadeiramente a sair de lá. No fim do dia vão a casa, não vão para casa.
A zona da Encarnação continua a mesma. A família cresceu, eu cresci. Mas houve uma pessoa que desapareceu entretanto. A minha tia. O meu tio está a desaparecer. Não somos nada. O cinema sente a falta dele. E eu sinto que devia ter sentido a falta dele quando ainda me conseguia reconhecer. Vim meio tristonho da clínica porque é sempre doloroso encontrar uma pessoa assim. Mas lembrei-me que a família mais próxima está praticamente todos os dias com ele e que no cinema da Encarnação toda a gente se lembra dele como se ainda continuasse a descer aquelas escadas todos os dias, para ir beber o seu copito de vinho com a malta amiga e dar dois dedos de conversa. Fiquei mais aliviado e, antes de me vir embora e de o deixar a repousar, peguei num dos rebuçados daquele prato que se encontra no quarto onde por agora descansa.

Miguel Godinho

sexta-feira, dezembro 15, 2006

Um afecto ondulante

Quero beijar as águas gélidas que me separam de ti
deixar o tempo passar de propósito para te perder
sabendo que te encontrarei em cada esquina
quero consumir o veneno que me intoxica de ilusões
e me derruba, me acalma, me sustenta de amores fáceis
mais fáceis que o que tenho por ti

acaba sempre por ser como na primeira vez,
é sempre uma primeira vez
quase uma volúpia de frágeis enganos, tão claros
uma sensualidade que não se dissimula, sabêmo-lo
e gostamos tanto de atropelar o afecto, de chorá-lo
como que sabendo que esse engano é o Amor
e é dor, é desejo, é calor, são duas almas
que se completam, que se contorcem
por um desejo mais forte que o sol.


Miguel Godinho

quinta-feira, dezembro 14, 2006

Porque não disse bem o queria, vou tentar de novo...

O que as palavras [não] dizem II

Por vezes as palavras certas
não saem
e dizemos

o que não queremos
outras vezes

nem certas nem nada
e não dizemos
outras ainda

não há palavras para dizer
e não se diz
muitas vezes

também se diz
sem se dizer
mas raramente
fica por dizer
o que as palavras

não dizem.

Acontece pensar-se
que
se diz uma coisa

e diz-se outra
às vezes acha-se que

se ouve algo
quando o que se disse

não foi isso
outras vezes diz-se

mesmo sem se achar
que se disse
mas diga-se
o que se disser
a verdade é que

quase nunca
se diz
o que se devia dizer.

Miguel Godinho

quarta-feira, dezembro 13, 2006

Put some heresy where your heart is.

Ursula Rucker

terça-feira, dezembro 12, 2006

Aparição

Há um vazio essencial que antecede a escrita

depois vem um perfume que se vai espalhando

uma presença que se constrói quase sozinha

e se revela discretamente

vagueias progressivamente neste poema

espreitando timidamente por entre as palavras

tentando que te sinta e te

dê a forma das letras que te escrevem

só assim consegues que

te vá calmamente descobrindo

até que o esplendor que te nomeia

ilustre finalmente a fresca

claridade da folha de papel

e eu te sinta plenamente.

Miguel Godinho

quinta-feira, dezembro 07, 2006

Uma vida a 2 (ou 1x1)

Secreções líquidas e sensações translúcidas
foi assim que
tentámos que o coração brilhasse de amor por nós
ainda assim não importa o modo como nos olham
como nos julgam e decidem a impossibilidade
latente, demasiado óbvia da insegurança existente
nestas duas almas antagónicas, tão diferentes
é verdade que uma melodia distante rasga
constantemente a vela do barco que nos transforma
neste mar agitado que é uma vida em comum
dia após dia aprendemos novas lições
novas ideias que apontam para a dificuldade real
de nos aturarmos um ao outro
ou tentarmos fazê-lo
daí a conclusão tão evidente
um vezes um nem sempre é igual a um
raras vezes deixa de ser
um vezes um

Miguel Godinho

quarta-feira, dezembro 06, 2006

O perfume da tua ausência

Revi-me no teu olhar transparente
na dor residual da tua voz surda
senti-me na quietude da tua óbvia falta
de comparência

por breves instantes pareci acordar
carregar de cor um mundo cinzento, pálido
uma nuvem que cobre este
sol que tarda em surgir

não eras tu que suavemente me seduzias
enquanto pedia à noite para se demorar?
não eras tu que me permitias ver-te sem te olhar?
não eras tu a brisa quente que me aquecia a face
nesta fria tarde de Dezembro?

senti-me na tua ausência
no teu perfume a nada, que teima em desaparecer

Miguel Godinho

segunda-feira, dezembro 04, 2006

O bom turismo

Como em tudo na vida, existem coisas boas e coisas más. Costuma dizer-se que as boas atraem as boas e as más, naturalmente, atraem as más. Um pouco por influência, por propensão, como que uma tendência. E no que toca ao turismo, penso que se possa perfeitamente aplicar esta fórmula. Se num determinado local o tipo de oferta começa por ter em conta aquele tipo de turismo que não traz nada de benéfico (mas que rende, minimamente – por enquanto...) à zona onde se instala, parece que logo atrás nascem (qual cogumelos) uma série de equipamentos que apontam exactamente nesse mesmo sentido. Fica no entanto por esclarecer o que é que se enquadra num bom turismo e que, no seguimento da ideia atrás defendida, poderá trazer vantagens à região.
Em minha opinião (e de uma maneira utópica), o bom turismo não é aquele em que a oferta presenteia o turista com o que ele quer mas sim aquele em que o turista vem descobrir na região que visita aquilo que ela tem para oferecer. É óbvio que na realidade não deverá ser bem assim uma vez que a oferta tem de possuir resposta para as exigências do turista.
Assim sendo, aquilo que está em jogo num turismo sadio não é mais que o seu nível de informação e, mais importante, o grau de formação do visitante e, logicamente o nível em que a oferta se enquadra. Se a região não possui um tipo de oferta que aponta no “bom” sentido, o problema agravar-se-á sempre porque uma vez adaptado ao tipo de oferta “fácil”, descuidada, torna-se muito difícil inverter a questão com a implicação de ter de se dar a volta a uma toda uma série de coisas, como que se de uma bola-de-neve se tratasse.
O viajante que está informado não vem certamente à procura do que existe em todas as outras regiões do globo, vem antes em demanda da diferença, do autêntico, do genuíno, do preservado, da essência do local que visita. O que não se revela muito interessado vem à procura do hotel onde se come muito e não bem, das piscinas grandes, de bares onde a bebida é barata e as canecas são grandes, de locais onde se “oferece” a sua língua em qualquer canto. Por sua vez, o turista informado procura uma oferta relacionada com o local onde se encontra. O que quero dizer com isto? O visitante informado não se importa que não falem a sua língua em todo o lado porque também se diverte a tentar comunicar na língua local. Não se importa também que num determinado local não exista uma piscina 20mx40m nem que num hotel não lhe sirvam a comida até o prato transbordar, será mais interessante se o prato apresentar um certo requinte, um toque de mestria na sua apresentação, de preferência enquadrado numa receita local. Não se importa que esteja mau tempo e não seja possível ir à praia, desde que a oferta cultural local cubra essa impossibilidade. Esse tipo de turismo não gosta de visitar um local onde existam cem aldeamentos, carradas de prédios e shoppings à farta em torno da sua residência – porque isso há em todo o lado, de uma maneira excessiva. Procura antes a tranquilidade, própria do período de férias, a preservação da natureza, a amabilidade das pessoas locais (não corrompidas pela ambição desmedida e pela mesquinhez assanhada que o excesso de visitantes famintos lhes incute na mente), a gastronomia sem muitos Macdonalds por perto. Não sei, mas parece-me que este tipo de turismo está meio abolido da nossa região. Muito por culpa da mesma se ter moldado no sentido contrário praticamente desde que se abriu ao turismo. Preferiu-se desde o início a quantidade em detrimento da qualidade.
Regressando às duas ideias iniciais deste texto, volto a lembrar que as coisas boas costumam atrair as coisas boas e as más arrastam as más. Da mesma forma, digo sem complexos que a formação e a informação (quer dos turistas, quer da oferta) é uma coisa que resolve praticamente todos os problemas. E é uma coisa que nesta região, está meio apagada. E isso reflecte-se no tipo de turismo que temos actualmente.
É absolutamente vital uma maior aposta na formação e na educação dos agentes responsáveis pela oferta turística uma vez que estes são domínios chave, prioritários para a definição de um plano turístico coeso. Sem uma oferta instruída não se consegue uma procura com qualidade. E sem uma procura de qualidade não saímos do mesmo tipo de turismo de baixo nível, sem referências, sem identidade e, como tal, sem relevância para o desenvolvimento de um turismo com interesse. E quem paga é a região e, em primeira instância, quem cá vive e que tem de levar com o turistazeco habitual que não respeita ninguém.

Miguel Godinho